CONTEÚDO SENSÍVEL1
Mariana Destro, 2025Talvez nunca me esqueça da primeira vez em que vi uma cena de penetração. Era meu aniversário de 14 anos e, por alguma razão, vivia uma fase de obsessão pelo ator francês Jean-Pierre Léaud, ícone da Nouvelle Vague. Meu pai era dono de uma locadora, e meu objetivo era assistir a todos os filmes de Léaud que conseguisse encontrar. Meu aniversário caía em um sábado e, àquela época, eu passava os fins de semana com meu pai. Na locadora, encontrei uma fita VHS de O Pornógrafo (2001), filme de Bertrand Bonello sobre um diretor de cinema pornô em crise, que, depois de décadas afastado da indústria, decide voltar à ativa porque é a única coisa que sabe fazer bem. Jacques Laurent, o tal pornógrafo, é interpretado por Jean-Pierre Léaud.
A cena em questão mostra Jacques Laurent dirigindo seu novo filme explícito. A atriz Ovidie se coloca de quatro enquanto o ator com quem contracena se aproxima. A câmera fecha nos órgãos sexuais dos dois — ele à esquerda, ela à direita — e os enquadra ao mesmo tempo: as nádegas, o pênis, a vagina. O ator a penetra num movimento de vaivém, que dura alguns segundos. Os dois gemem.
(Anos depois, assisti a um documentário feminista sobre a indústria pornográfica, dirigido pela própria Ovidie. Chama-se Pornocracy e foi lançado em 2017. O filme discute a ascensão da internet e seu impacto no mercado de filmes adultos, enfatizando uma espécie de democratização do acesso à pornografia que a internet proporcionou.)
A primeira fita, encontrada por Renee na escada da entrada da casa, dentro de um envelope pardo sem identificação, exibe apenas imagens da fachada da casa. Na manhã seguinte, uma nova fita é deixada no mesmo lugar. Desta vez, as imagens revelam o interior da casa sob a perspectiva de um observador invisível que flutua pelos cômodos até alcançar o quarto onde o casal dorme. Diante da ameaça implícita nesses registros, Renee decide chamar a polícia. Atendendo ao chamado, os agentes perguntam se o casal possui uma câmera de vídeo. Renee responde que não, “Fred odeia elas”. A resposta paira no ar, provocando um silêncio desconfortável, até que Fred o rompe: “Gosto de lembrar das coisas do meu jeito.” “O que você quer dizer com isso?”, pergunta um dos policiais. “Como eu lembro delas. Não necessariamente do jeito que elas aconteceram.”
À noite, Fred e Renee vão à festa de Andy, um velho amigo dela. A maneira como ele interage com Renee reforça as suspeitas de Fred, que já desconfiava de que estava sendo traído. Ao deixá-los a sós para buscar uma bebida, Fred é interpelado por um homem de preto. No instante em que ele se aproxima, a festa silencia — não porque as pessoas pararam de falar, mas como se sua presença tivesse o poder de calar tudo ao redor, enquanto o mundo segue seu curso. Ele encara Fred e diz: “Já nos encontramos antes, não foi?”
Ao amanhecer, Fred recebe a última fita. Nela, há um novo registro. Além das imagens já vistas nas fitas anteriores, quando o observador invisível flutua até o quarto do casal, revela-se uma cena horripilante: Renee está morta, assassinada pelo próprio marido. Tomado pelo ciúme e castrado pela impotência diante do desejo de possuir sua mulher, ele a mutila. (Nas imagens, o corpo de Renee faz lembrar o da Dália Negra.3)
Fred não se lembra de nada.
Embora seja creditado como Mystery Man, Robert Blake, o ator que o interpretou, afirmou em uma entrevista no talk show The Late Late Show with Tom Snyder que seu personagem é o Diabo.4 Na festa, ao conversar com Fred, torna-se evidente que ele é o responsável pelas imagens das fitas VHS. Nos momentos finais do filme, ele aparece segurando uma filmadora. Empunhando a câmera, Mystery Man confronta Fred com imagens que desafiam sua própria memória dos eventos. O cinegrafista é o Diabo.
A verdade, n’A Estrada Perdida, não se apresenta como um dado absoluto, mas como um construto subjetivo, atravessado pelo desejo e pela memória. Quando Fred Madison afirma preferir lembrar das coisas do seu jeito, ele sugere que a verdade dos acontecimentos é sempre filtrada pela percepção individual, nunca um reflexo puro da realidade. O cinegrafista não captura a verdade, mas a fabrica. As fitas VHS, sejam elas as que chegam à casa de Fred e Renee ou a cópia de O Pornógrafo a que assisti em 2007, assim, estão longe de serem meros registros da realidade.
Esse mesmo deslocamento da verdade está no centro da reflexão de Laurent de Sutter sobre Jean-Luc Godard, um dos fundadores da Nouvelle Vague, e sua “obsessão maníaca” (Sutter, 2024, p. 12) pela verdade. Assim como em A Estrada Perdida, no cinema de Godard, a verdade não é um ponto de chegada, mas um efeito da montagem, um ricochete entre imagens. Segundo Sutter, se, para Baudelaire, o artista da vida moderna já não pode mais reivindicar uma relação direta com a verdade, para Godard, o cinema é o medium pelo qual essa verdade fragmentada se manifesta — não como essência, mas como superfície:
A puta de Une femme coquette encarnava a forma inaugural do elo, trabalhado por Godard ao longo de toda a sua obra, entre arte e prostituição — isto é, entre arte e verdade. O estabelecimento desse laço, porém, não foi obra do realizador, mas de Baudelaire, que, em Fusées (1851), se perguntava «O que é a arte?», para responder em seguida: «Prostituição». Para Baudelaire, o artista da vida moderna era aquele que estava disposto a aceitar a condição prostituída de sua prática e, por extensão, de seu ser — todo artista é uma puta. Mas esse traço específico da modernidade artística não deveria ser entendido como inerente à condição sociológica do artista, privado a partir dali de fortuna ou mecenato. O fato de o artista agora ter de escrever, pintar e compor para ganhar dinheiro era apenas um indício, para quem soubesse interpretar, de um problema muito mais grave: o da condição metafísica do artista. Este não era uma puta porque se vendia: ele se vendia porque era uma puta — punha sua arte a serviço dos ricos e poderosos, porque se tratava de uma arte prostituída em sua essência. [...] O artista da vida moderna era o artista da verdade não óbvia — da verdade vislumbrada entre bijuterias e maquiagens, bugigangas e o perfume das cocottes. Qualquer esperança de reconciliação com a verdade devia ser esquecida: a maquiagem, a máscara ou o truque haviam se tornado o lugar da verdade, o espaço de sua manifestação. A modernidade é a cosmética do verdadeiro (Sutter, 2024, p. 15-16).
A cosmética do verdadeiro descrita por Laurent de Sutter também atravessa a estética lynchiana. Enquanto, na modernidade de Baudelaire, a verdade emerge da maquiagem e da superfície manipulada, no filme de David Lynch, ela se dissolve em sobreposições e deslocamentos narrativos. As imagens das fitas VHS, tal como as aparências na obra de Godard, não têm um significado fixo, mas se tornam verdade quando reconhecidas pelo observador. O que está em jogo não é a distinção entre realidade e ilusão, mas a constatação de que toda verdade é um artifício. No entanto, não se deve perder de vista que as imagens são, antes de tudo, tão somente imagens, “cujo poder de mentira existe apenas por meio do uso que fazem dela” (Sutter, 2024, p. 26).
Embora Godard, em contraposição a Baudelaire, entendesse que a modernidade havia chegado ao fim e que a puta, nesse contexto, é o medium de um regime pós-moderno da verdade, “a encarnação da arte em si” (Sutter, 2024, p. 27), é essencial refletir sobre a relação proposta pelo poeta entre o artista e a puta. Ao afirmar que a arte é prostituição, Baudelaire descreve a condição do artista moderno que, ao contrário de seus predecessores — que se dedicavam a “obras-primas suscetíveis de de reivindicar a pura expressão da verdade” (Sutter, 2024, p. 16) —, se vê implicado na realidade capitalista, em que é preciso atender às demandas do mercado. A artista-puta, portanto, se situa em um mundo feito de mentiras e maquiagem. Como observa Sutter, “as putas mentem, mas nunca enganam” (2024, p. 27).
A artista-puta caiu do pedestal. Ela vive entre as contradições do lugar que ocupa, mergulhada em negociações que envolvem seu trabalho, o público e as exigências do campo da arte. Para não ceder à ideia de artista demasiadamente romântica de Baudelaire, é preciso conservar algo da artista-puta e contextualizá-la no presente. Diante disso, coloco em questão minha própria posição enquanto artista. Qual o espaço social que ocupo e que negociações se fazem necessárias para existir dentro dele? Se a arte é uma forma de prostituição, o que é ser artista-puta no campo da arte contemporânea?5
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Em um filme BDSM6 disponível em sites de pornografia,7 diante de uma audiência, uma atriz é penetrada por um ator. Ela atinge o orgasmo, mas o ato não se encerra. Após alguns minutos, ela sinaliza que terá outro orgasmo. Parte da dinâmica da cena é que, para gozar, ela deve pedir permissão para a única outra mulher em frente às câmeras, que grita: “Vocês querem vê-la gozando de novo ou querem vê-la ser torturada?” Em uníssono, o público responde: “Torturada, torturada!”
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Quando concebeu Untitled (2003), Andrea Fraser acabara de assinar, pela primeira vez, um contrato de representação com uma galeria comercial. Conhecida por sua atuação na crítica institucional, até então a artista havia se recusado a vender obras para colecionadores privados, assumindo publicamente uma postura contrária ao mercado de arte. No entanto, tendo fechado negócio com a Petzel Gallery, em Nova York, Fraser sentiu que traía os valores que nortearam sua trajetória.
Foi então que, recorrendo à antiga metáfora da venda de arte como prostituição, propôs a seu galerista, Friedrich Petzel, que encontrasse um colecionador disposto a comprar uma fita de vídeo dele próprio fazendo sexo com a artista em um quarto de hotel. Segundo Fraser, Untitled
é sobre o que significa ser um artista e vender o seu trabalho — vender o que poderia ser, o que deveria ser, uma parte muito íntima de si mesmo, de seu desejo, de suas fantasias e permitir a outros usá-lo como uma tela para suas fantasias (Fraser apud Leite, 2014, p. 67).
Para que a obra não se confundisse com o serviço sexual em si, Fraser decidiu que o vídeo — e não o ato — deveria ser o trabalho. Ela produziu Untitled em uma edição de cinco fitas, que assumem, além do estatuto de mercadoria, a função de mediadoras da troca entre artista e colecionador, intermediada pelo galerista (Leite, 2014). A atenção às relações sociais implicadas no processo reforça o caráter de crítica institucional do trabalho, sendo consideradas o elemento central de Untitled (Leite, 2014).
Além da edição do colecionador, duas edições do vídeo foram vendidas: uma para a Generali Foundation e outra para a coleção da família Vanhaerents. As edições restantes foram retiradas do mercado a pedido da artista após o tabloide Daily News publicar uma matéria alegando que Fraser havia “se vendido” por US$ 20 mil — um valor irrisório para os padrões do mercado internacional de arte.
A repercussão negativa gerada pela matéria, que pretendia usar Untitled como um exemplo da insanidade do mercado de arte, que teria viabilizado a venda de uma noite de sexo por um valor exorbitante, levou Fraser a romper com a Petzel e a abandonar galerias comerciais — decisão que manteve até o período pós-pandemia, quando firmou parceria com a Marian Goodman Gallery. Foi nessa galeria que Untitled foi exibido novamente, cerca de vinte anos após sua estreia, na individual “Untitled (Video, Audio, Objects)”.8
Na ocasião, a artista participou de uma conversa mediada pelo curador belga Chris Dercon, na qual afirmou nunca ter revelado — nem pretender revelar — a quantia paga pelo colecionador, descrevendo-a apenas como um valor simbólico, necessário para a constituição da obra. Sobre o escândalo provocado pela matéria do Daily News, Fraser reflete que, ao romper a bolha do mundo da arte, Untitled a colocou em uma encruzilhada entre duas economias: a cotidiana, em que US$ 20 mil é uma remuneração significativa por uma noite de trabalho, e a do mercado de arte. Como ela mesma pontua:
Se estou em uma galeria, não importa o quanto eu rejeite os critérios valorativos que definem a hierarquia social desta galeria, ainda sou objetivamente valorada e julgada de acordo com esses critérios. E como é difícil separar a valoração naquele contexto do seu próprio valor humano (Andrea [...], 2024, 15 min 26 s, tradução livre).9
Dessa maneira, Untitled vai além da metáfora da arte como prostituição ao expor o entrelaçamento entre a valoração pessoal e a valoração de mercado, sustentando as dinâmicas de participação em uma economia profundamente estratificada, como a do mundo da arte (Andrea [...], 2024). Embora pornográfico, o vídeo não se concentra na troca sexual em si, mas na transação da arte como mercadoria, revelando o intricado jogo de desejos e expectativas que permeia a relação entre a artista-puta e não apenas os compradores de arte, mas também o público — especializado ou não10 — e as instituições.
A crítica de Fraser ao mercado de arte sugere que o desejo ocupa um lugar central na arte contemporânea, ao mesmo tempo em que é uma construção do mercado. Essa reflexão é essencial para compreender a posição da artista-puta dentro do campo fragmentado da arte contemporânea, sobretudo quando se consideram as camadas emocionais, físicas e simbólicas em jogo na fusão entre desejo, intimidade e valor da obra. Untitled constrói um topos em que arte e desejo se entrelaçam sob a lógica do mercado — um campo de trocas que reflete a dinâmica social que Baudelaire tão agudamente diagnosticou.
Em 2019, desenvolvi uma série de performances registradas em vídeo nas quais, como camgirl,11 interagi com pessoas desconhecidas em sites de sexo virtual. Nesses trabalhos, eu estava sempre em meu ateliê. Em uma das transmissões, estava dentro do deCurators, um espaço autônomo de arte contemporânea em Brasília, durante uma exposição parte do Olho Selvagem,12 ciclo de exposições e performances que curei entre 2018 e 2019.
Ao incorporar o trabalho sexual à minha prática artística, buscava evidenciar o entrelaçamento entre a tecnologia digital e a prostituição, além de articular uma declaração política a favor de uma abordagem positiva da sexualidade e do reconhecimento de categorias de trabalho historicamente invisibilizadas pela divisão de gênero patriarcal (Prada, 2018). Hoje, percebo que era também uma reação ao que sentia enquanto artista recém-graduada em Artes Visuais, tentando me inserir no circuito local de arte contemporânea.
Parte essencial da dinâmica com o meu público nesses sites era ser dirigida pelos anônimos, colocando-me à disposição de quem quer que estivesse do outro lado da tela. Como é de praxe no camming, essa interação era incentivada pelo pagamento de tokens. (De certo modo, esses anônimos demonstraram maior generosidade com meu trabalho do que muitos artistas, curadores e instituições que encontrei ao longo da minha trajetória como artista-puta.)13 Ainda assim, eu sempre mantinha o controle: podia encerrar a transmissão a qualquer momento. Ao fim e ao cabo, o que se expunha ali era apenas imagem — o que chamo de duplo digital.
Ainda que seja possível observar, mais uma vez, que as imagens e a verdade não são puras, mas fragmentadas e mediadas pelo desejo do observador, tornou-se impossível dissociar o duplo digital de mim. Talvez como ocorreu com Untitled para Andrea Fraser, me vi diante de uma encruzilhada entre o valor daquela imagem que se prostituía e meu próprio senso de identidade. A reação foi imediata: a partir do momento em que esses trabalhos começaram a circular, pude medir sua recepção, não mais pelo público anônimo dos sites de sexo virtual, mas pelo circuito local.
Tomando emprestadas as palavras da escritora canadense Nelly Arcan: “Eu me expunha por completo, como um sacrifício oferecido em praça pública. Não me arrependo, mas não quero mais isso” (Saint-Hilaire, 2007, tradução livre).14 Reconheço que, embora o universo das imagens pornográficas ainda me interesse, já não desejo mais esse tipo de exposição. A partir dessa reflexão, comecei a desenvolver um trabalho que intitulei Pixel Porn.
Os repetidos episódios de censura que enfrentei nos últimos anos, tanto em espaços culturais quanto nas redes sociais, que são comumente utilizadas por artistas para divulgar seus trabalhos no próprio meio, me provocaram a incorporar à minha prática os recursos digitais de censura de imagens pornográficas. Em Pixel Porn, aproprio-me de imagens de romances eróticos brasileiros dos anos 1970 e 1980, comprados em um sebo próximo à Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, sobrepondo-lhes mosaicos de pixels que ocultam os corpos das mulheres retratadas. O uso dos mosaicos ironicamente situa essas imagens de romances eróticos no campo visual da pornografia, tão presente na era digital.15
Embora sejam oriundas de publicações populares, essas imagens possuem uma sofisticação formal que remete à tradição do nu na arte. Um detalhe singular do trabalho é o olhar desafiador de uma das mulheres retratadas, que encara diretamente o observador. Além disso, um aspecto crucial que se faz presente nessa pesquisa é o apagamento dos créditos dessas imagens, produzidas sob a ditadura militar no Brasil, impossibilitando a identificação de modelos, fotógrafos e autores. Assim, Pixel Porn não apenas ressignifica essas imagens, mas também aponta para a persistência das dinâmicas de controle, anonimato e censura entre passado e presente.
O trabalho foi apresentado pela primeira vez no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, na exposição “Me chame de hélio”, organizada pelo Grupo de Pesquisa CNPq Práticas Artísticas e Experiência Cotidiana,16 entre 15 de março e 5 de abril de 2025. A imagem, impressa em tecido voil e medindo 180 x 120 cm, ganha um caráter fantasmagórico intensificado pela translucidez do suporte. Como meu analista observou depois de visitar a coletiva, essa translucidez parece, paradoxalmente, tornar visível a censura — como se a própria matéria da imagem revelasse o que se tenta ocultar. Em um segundo momento, ele esteve na exposição “Reverbere”, com curadoria de Gabriela Maciel, realizada no Futuros – Arte e Tecnologia entre 9 de agosto e 28 de setembro de 2025.
Quando vi, em O Pornógrafo, uma cena de penetração pela primeira vez, percebi que a imagem carrega um poder que vai além de sua função de registro: ela revela, simula, esconde e fabrica verdades. Esse deslocamento entre realidade e ficção, corpo e imagem, atravessa minha trajetória artística e se desdobra em Pixel Porn, concebido como um gesto de apropriação diante da recorrência histórica da censura e do apagamento.
Se antes era o meu corpo a matéria de exposição, agora são essas imagens — fragmentos de um passado que insiste em permanecer — que ocupam esse lugar. Ao manipular tais imagens, inscrevendo nelas os sinais da censura digital contemporânea, Pixel Porn não apenas tensiona as interdições do presente, mas redimensiona a lógica do desejo como campo de disputa.
Como as fitas VHS em A Estrada Perdida, que desafiam a memória de Fred Madison ao impor uma verdade inescapável, essas imagens retornam filtradas pelo dispositivo da censura, oscilando entre o que é oculto e o que se torna visível. O desejo, que sempre foi uma construção, segue operando dentro desse jogo. Mas, desta vez, prefiro que ele atue através da imagem, e não sobre mim.
1. Publicado com o título “Conteúdo sensível: imagens técnicas e a artista-puta na cosmética da verdade” em: Revista Desvio, v. 10, n. 2, p. 89-99, nov. 2025. Disponível em: revistadesvio.eba.ufrj.br/2025/10/22/decima-nona-edicao-da-revista-desvio. Acesso em: 2 nov. 2025.
2. Ao longo do filme, que se passa em Los Angeles, descobrimos que Dick Laurent, também conhecido como Eddy Laurent, é um gângster envolvido com a indústria pornográfica.
6. BDSM (bondage-discipline, dominance-submission and sadomasochism) é o termo utilizado para descrever um conjunto de práticas sexuais consensuais que envolvem dinâmicas de poder, controle, dor e prazer, com ênfase na segurança, no respeito e na comunicação entre os participantes.2. Ao longo do filme, que se passa em Los Angeles, descobrimos que Dick Laurent, também conhecido como Eddy Laurent, é um gângster envolvido com a indústria pornográfica.
3. Dália Negra é o nome dado ao caso do assassinato de Elizabeth Short, uma jovem de 22 anos cujo corpo mutilado foi encontrado em Los Angeles em 1947. Seu torso desmembrado se assemelhava à imagem retratada em Minotaur (1934), fotografia de Man Ray. Até hoje não se sabe quem cometeu o crime.
4. Ver em: youtu.be/TQ04iPoecFo. Acesso em: 9 fev. 2025.
5. No ensaio The Field of Contemporary Art: A Diagram (2024), Andrea Fraser apresenta um diagrama desenvolvido a partir do pensamento de Pierre Bourdieu com o objetivo de ilustrar a fragmentação do campo da arte contemporânea em subcampos que, embora se sobreponham em diversos graus, operam em práticas, discursos, economias, instituições e espaços sociais fundamentalmente distintos. Esses subcampos possuem critérios próprios de avaliação da arte e impõem diferentes definições sobre o que é a arte. O diagrama serve como uma ferramenta para situar os campos de produção cultural dentro do espaço social e as relações de poder, que são estruturadas pelas distribuições de formas diversas de capital. Ver em: e-flux.com/notes/634540/the-field-of-contemporary-art-a-diagram. Acesso em: 23 fev. 2025.
4. Ver em: youtu.be/TQ04iPoecFo. Acesso em: 9 fev. 2025.
5. No ensaio The Field of Contemporary Art: A Diagram (2024), Andrea Fraser apresenta um diagrama desenvolvido a partir do pensamento de Pierre Bourdieu com o objetivo de ilustrar a fragmentação do campo da arte contemporânea em subcampos que, embora se sobreponham em diversos graus, operam em práticas, discursos, economias, instituições e espaços sociais fundamentalmente distintos. Esses subcampos possuem critérios próprios de avaliação da arte e impõem diferentes definições sobre o que é a arte. O diagrama serve como uma ferramenta para situar os campos de produção cultural dentro do espaço social e as relações de poder, que são estruturadas pelas distribuições de formas diversas de capital. Ver em: e-flux.com/notes/634540/the-field-of-contemporary-art-a-diagram. Acesso em: 23 fev. 2025.
7. “A pornografia diz a verdade performativa sobre a sexualidade não por ser o grau zero da representação, mas porque revela que sexualidade é sempre performance, prática pública de uma repetição regulada, uma encenação, e um mecanismo involuntário de conexão ao circuito global de excitação-frustração-excitação. A indústria contemporânea do entretenimento, com sua divisão de representação em categorias, [...] nega o valor performativo da pornografia, reduzindo-a a ‘sexo hardcore’, como se, do ponto de vista teatral, houvesse uma diferença ontológica entre um beijo, uma briga e uma penetração anal” (Preciado, 2023, p. 258).
8. A exposição esteve aberta ao público entre 6 de setembro e 5 de outubro de 2024 na Galerie Marian Goodman, em Paris. Ver em: mariangoodman.com/exhibitions/574-andrea-fraser-untitled-video-audio-objects. Acesso em: 25 fev. 2025.
9. “And if I’m in a gallery, I’m objectively, no matter how much I might reject the criteria of value that defines hierarchies and the pecking order in that gallery, I’m still objectively valued and judged according to that criterion. And how difficult it can be to separate valuation in that context from one’s sense of self.”
10. “Se nas demais performances de Andrea Fraser, a artista conhecia o perfil de seu público, em Untitled a câmera de vídeo retira da artista este controle” (Leite, 2014, p. 68).
11. Camgirls são modelos eróticas que se despem em transmissões ao vivo pela internet.
12. Idealizado como um exercício poético de curadoria, Olho Selvagem apresentou 25 jovens artistas em uma sequência de gestos de descentralização de narrativas não hegemônicas. Ver em: decurators.org/olho-selvagem. Acesso em: 25 fev. 2025.
13. Ainda que tenha exibido dois ou três vídeos dessa série em galerias, escolhi disponibilizá-los gratuitamente na internet, ampliando minha investigação sobre os circuitos, ou redes, digitais de informação e socialização. Desse modo, são trabalhos de arte que dificilmente serão vendidos tanto devido à posição marginal do vídeo no mercado de arte quanto ao seu próprio valor de exposição.
14. “J’étalais mes tripes sur la place publique. C’était presque un sacrifice de moi-même que j’étais en train de faire. Je n’ai pas de regrets, mais je ne veux plus de ça.”
15. O mosaico é uma técnica de censura visual que oculta partes de uma imagem ao distorcê-las com blocos de pixels, geralmente para encobrir detalhes sensíveis, como genitais. No contexto da pornografia, é empregado para atender a regulamentos legais e diretrizes de plataformas, viabilizando a circulação do conteúdo sem infringir normas sobre exposição explícita.
16. Liderado pelo prof. Dr. Luciano Vinhosa, o Grupo de Pesquisa CNPq Práticas Artísticas e Experiência Cotidiana é vinculado ao Departamento de Arte (GAT) e ao Programa de Estudos Contemporâneos das Artes (PPGCA) da UFF, bem como ao Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ART/UERJ).
REFERÊNCIAS:
- ANDREA Fraser in conversation with Chris Dercon. Entrevistada: Andrea Fraser. Entrevistador: Chris Dercon. Paris: Marian Goodman Gallery, 25 set. 2024. Podcast (56 min). Disponível em: https://open.spotify.com/episode/3Qfzl6HDU2Nmtd7LyRYqvU. Acesso em: 25 fev. 2025.
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ESTRADA Perdida, A. Direção: David Lynch. Estados Unidos e França: CIBY 2000, 1997. 135 min.
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FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985.
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LEITE, Caroline Alciones de Oliveira. “Sem título, sem som, sem controle”. Gambiarra, n. 7, p. 59–73, dez. 2014. Disponível em: https://periodicos.uff.br/gambiarra/article/view/31340. Acesso em: 21 fev. 2025.
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PORNÓGRAFO, O. Direção: Bertrand Bonello. França e Canadá: Haut et Court, 2001. 106 min.
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PRADA, Monique. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018.
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PRECIADO, Paul B. Testo junkie: Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
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SAINT-HILAIRE, Mélanie. La deuxième vie de Nelly Arcan. L’actualité, 15 set. 2007. Disponível em: https://lactualite.com/culture/la-deuxieme-vie-de-nelly-arcan. Acesso em: 26 fev. 2025.
- SUTTER, Laurent de. Retrato do artista como puta. In: Metafísica da puta. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2024. p. 11–30.