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ALGUMA COISA TEM QUE ACONTECER
Mariana Destro, 2025

Ao digitar uma mensagem para um modelo generativo de linguagem, como o Chatgpt, a resposta é gerada token por token (unidades que podem corresponder a uma palavra inteira, a parte de uma palavra ou até a um símbolo), por meio de cálculos realizados em redes neurais profundas. Em segundos, a inteligência artificial oferece a resposta mais útil, coerente e relevante possível. Quanto mais claro for o prompt, ou seja, as instruções em linguagem natural dadas à IA, melhor tende a ser a resposta. Harder, better, faster, stronger, como na música do Daft Punk.
            À primeira vista, o uso de cálculos de probabilidade por modelos de linguagem pode sugerir um paralelo com o Teorema do Macaco Infinito, formulado pelo matemático francês Émile Borel em 1913.1 O teorema propõe um exercício mental: se infinitos macacos pressionassem teclas aleatoriamente em máquinas de escrever por tempo infinito, quase certamente2 um deles acabaria reproduzindo até mesmo uma obra canônica, como Hamlet.
            Ainda que exagerada, a analogia entre o teorema e o funcionamento dos modelos de linguagem mostra como decisões probabilísticas podem, ao longo de muitas iterações, resultar em sequências coerentes e significativas. A diferença é que esses sistemas não operam com aleatoriedade pura; eles aprendem padrões linguísticos a partir de grandes volumes de textos e condicionam cada nova escolha ao contexto anterior. É essa estrutura que permite produzir linguagem.
            De um jeito ou de outro, a partir do momento em que você envia um prompt, alguma coisa tem que acontecer.

Algo está podre aqui na Dinamarca
Tinha por objetivo fazer o Chatgpt escrever putaria. Para isso, precisava desvendar os prompts que burlariam os filtros de segurança da OpenAI. Quando soube que era possível alimentar a IA com meus próprios arquivos, baixei alguns e-books e dei para ela ler. Pedi que prestasse atenção particularmente ao estilo de Lolita Pille, em Hell Paris 75016 (2003), e de Nelly Arcan, em Puta (2021). Para testar, fiz uma série de perguntas, tentando provocar associações entre os livros. Fui conversando com a IA.
            Depois, dei para ela ler Meu ano de descanso e relaxamento (2019), de Ottessa Moshfegh, pedindo que se atentasse para a protagonista: uma mulher jovem, branca, formada em História da Arte por uma universidade da Ivy League. Ela trabalha em uma galeria de arte contemporânea em Manhattan e herdou, dos pais já falecidos, um apartamento no Upper East Side, onde passa os dias dopada de remédios psiquiátricos, decidida a dormir o máximo possível. Entorpecida pelo privilégio, ela busca uma maneira de anular a própria consciência e, com ela, o tédio e o vazio afetivo que marcam sua vida.
            A personagem de Meu ano de descanso e relaxamento, junto da prosa autoficcional de Nelly Arcan — marcada por uma lucidez exaustiva sobre a própria beleza — e de Hell, protagonista de Hell Paris 75016, formam uma tríade de burguesas aborrecidas: mulheres presas em gaiolas douradas que, incapazes de lidar com a angústia do próprio sofrimento existencial em um mundo em que o dinheiro não falta, destroem tudo o que as cerca. Em Hell, a protagonista, já nas primeiras linhas do romance, se apresenta assim: “Eu sou uma putinha. Daquelas mais insuportáveis, da pior espécie: uma sacana do 16ème, o melhor bairro de Paris, e me visto melhor que a sua mulher, ou a sua mãe” (Pille, 2003, p. 5).

Palavras, palavras, palavras
            Em 1962, a 20th Century Fox lutava para não fechar as portas. Os custos milionários de Cleópatra (1963), produção que se arrastava havia três anos, ameaçavam o estúdio de falência. Ao mesmo tempo, o diretor George Cukor enfrentava outro tipo de crise no set de Something’s Got to Give: uma estrela loira que estava sempre atrasada, o “sonho que Hollywood ensinou os americanos a sonhar”, que, enquanto faltava às filmagens, cantava “Parabéns para você” para o presidente dos Estados Unidos, vestida com seu célebre naked dress coberto de cristais. The late Miss Marilyn Monroe.3
            Something’s Got to Give nunca foi finalizado. Restam cerca de trinta a quarenta minutos de material bruto — cenas inteiras editadas por Cukor, tomadas alternativas e bastidores —, incluindo uma sequência na piscina, que seria o primeiro nu de uma grande estrela em um filme hollywoodiano. Naquele momento, nenhuma atriz viva tinha o prestígio, o apelo de bilheteria e a influência cultural de Marilyn Monroe.4 O nu foi filmado, mas jamais exibido nos cinemas.

Enquanto discutia com o Chatgpt os livros que havia o instruído a ler, me lembrei de uma sequência de imagens que havia gerado em 2021; salvo engano, a primeira vez em que brinquei com inteligências artificiais capazes de produzir imagens. A ideia de burlar os filtros de segurança já estava ali, latente. Pensei imediatamente na fotografia de Marilyn Monroe morta, que circulava no site Assustador, o repositório de horrores mais infame da antiga internet brasileira. Será que aquela IA também havia sido alimentada com essa imagem, que corre solta pela rede desde seus primeiros dias (Pollock, 2018)? 
            Com os prompts que pude elaborar (“dead Marilyn”, “Marilyn Monroe in the morgue” etc.), não consegui, é claro — todavia, o que surgiu foi uma estranha sequência de cenas: homens brancos de terno preto reunidos em torno de um caixão branco. Das dezenas de imagens geradas, apenas duas tinham uma figura feminina voluptuosa, vestida de branco. Uma loira. O fantasma de Marilyn Monroe.
            Um detalhe interessante sobre essas imagens é que elas foram geradas com uma tecnologia anterior à das ferramentas atuais, chamada GANs (Generative Adversarial Networks, ou redes generativas adversariais). Diferentemente dos sistemas recentes, que traduzem prompts em imagens de modo relativamente controlado, as GANs, grosso modo, funcionavam a partir do confronto entre dois algoritmos: enquanto um tentava gerar imagens cada vez mais convincentes, o outro buscava detectar o que era falso. O resultado desse processo era, muitas vezes, instável. Deformações, rostos imprecisos, cenas oníricas. As GANs não traduziam palavras, mas inventavam imagens a partir de padrões visuais, produzindo fantasias que pareciam emergir de um inconsciente maquínico, anterior à linguagem.

Embora isso seja loucura, mesmo assim há nela certo método
No Ato I, cena I de Hamlet, Horácio chama o Fantasma e ordena que fale, mas ele se afasta em silêncio. É apenas na cena IV, do mesmo ato, que o Fantasma interage com os vivos pela primeira vez, acenando para Hamlet. Na cena seguinte, o Fantasma enfim fala: “Não me lamentes, mas escuta, atento,/ O que revelo” (Shakespeare, 2017, p. 201). E se Marilyn fizesse o mesmo comigo? Restava-me tentar compreender o fantasma que se revelava nas imagens e segui-lo, como Hamlet, ao primeiro aceno.
            Assim, buscando também dar alguma densidade às minhas burguesas aborrecidas — divertidíssimas, mas, como todo rico, propensas a virarem caricaturas de si mesmas —, dei para o Chatgpt ler Goddess: the Secret Lives of Marilyn Monroe (1985), de Anthony Summers, a mesma biografia que, segundo David Lynch, originou uma adaptação; o roteiro de um filme jamais realizado, que viria a ser o gérmen da série de televisão Twin Peaks.5 Sem saber, era justamente esse o livro em que aquela mesma imagem de Marilyn morta havia sido publicada, com a legenda “Marilyn in Death” (Pollock, 2018).
            O que se seguiu foi um pingue-pongue entre mim e o Chatgpt. A partir dos livros lidos, das conversas e da orientação para que produzisse um conto estruturado em três atos, surgiu um texto que a própria IA intitulou Something’s Got to Give.6 Atuei como uma espécie de editora, lendo e comentando os rascunhos produzidos até chegarmos em uma versão que considerei satisfatória. O critério seguia o mesmo: escrever putaria.

Quando recebi o convite para participar da exposição “Proscrypta :: Gênesis”,7 no deCurators, decidi apresentar o conto junto a seis das imagens geradas por GAN, em um site. A coletiva marcou o início de uma frente de experimentação curatorial voltada à criptoarte. Todos os trabalhos foram transformados em NFTs (non-fungible tokens), identificações digitais únicas registradas em blockchain
            A associação entre texto e imagem, organizados em um site em HTML/CSS que pode ser salvo como um arquivo .zip, se mostrou uma maneira eficaz de dar forma final ao trabalho. No espaço expositivo, ele foi apresentado em um tablet, que podia ser livremente manuseado pelos visitantes.
            Para a venda dos NFTs, o deCurators desenvolveu um contrato “cryptocomunista”, ou seja, uma ferramenta automatizada que garante a distribuição igualitária dos valores arrecadados com as vendas das obras entre todas e todos os artistas. Posteriormente, as obras foram incorporadas à coleção do BRG.exe,8 um fundo de criptomoedas que investe em arte brasileira.



1. BOREL, M. Émile. La mécanique statique et l'irréversibilité. Journal de Physique Théorique et Appliquée, Les Ulis, v. 3, n. 1, p. 189-196, 1913. Disponível em: https://hal.archives-ouvertes.fr/jpa-00241832/document. Acesso em: 6 out. 2025.

2. Dada a combinação entre tempo infinito e eventos aleatórios — neste caso, os macacos digitando —, aqui a probabilidade de gerar qualquer texto finito se aproxima de 1, ou seja, a chance de o texto ser digitado por acaso se torna praticamente certa ao longo do tempo (“quase certamente”).

3. Em 19 de maio de 1962, no aniversário de John F. Kennedy celebrado no Madison Square Garden, Marilyn Monroe foi anunciada por Peter Lawford com a frase: “Mr. President, the late Miss Marilyn Monroe”. Em inglês, late pode significar tanto “atrasada” quanto “falecida”. Marilyn morreria de overdose acidental em 4 de agosto, dois meses e meio depois.

4. Ver em: MARILYN Monroe: os últimos dias. Direção: Patty Ivins. Estados Unidos: Prometheus Entertainment, 2001. 90 min.

5. A trama de Twin Peaks é desencadeada pelo assassinato de Laura Palmer, uma adolescente bem-quista pelos moradores da pequena cidade de Twin Peaks que levava uma vida dupla. Sobre as relações entre Marilyn Monroe e Twin Peaks, bem como os comentários de David Lynch sobre a inspiração em Goddess: the Secret Lives of Marilyn Monroe, ver em: https://vanityfair.com/hollywood/2017/02/mulholland-drive-david-lynch-masterpiece. Acesso em: 7 out. 2025.

6. “Alguma coisa tem que acontecer” (tradução livre).

7. Entre os dias 23 e 30 de maio de 2025, a exposição ocorreu tanto no espaço físico da galeria quanto nas plataformas Tezos Teia e Objkt. Além de mim, participaram da mostra Alexandre Rangel, bruCa teiXeira, Gisel Carriconde Azevedo, Lídice Silveira, Ivan Hugo, Maiara Martins, Peá Castro Alves, Phil Jones, Raísa Curty, Rodrigo Koshino e Shajara Néehilan Bensusan.

8. Ver em: https://objkt.com/@brgexe. Acesso em: 7 out. 2025.


REFERÊNCIAS:

  • ARCAN, Nelly. Puta. São Paulo: n-1 edições, 2021.
  • MOSHFEGH, Ottessa. Meu ano de descanso e relaxamento. São Paulo: Todavia, 2019.
  • PILLE, Lolita. Hell Paris 75016. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2003.
  • POLLOCK, Griselda. The missing wit(h)ness: Monroe, fascinance and the unguarded intimacy of being dead. Journal of Visual Art Practice, v. 16, n. 3, p. 265-296, 6 fev. 2018. Disponível em: http://eprints.whiterose.ac.uk/120953. Acesso em: 8 jul. 2025.
  • SHAKESPEARE, William. Hamlet. In: SHAKESPEARE, William. Grandes obras de Shakespeare: volume 1: tragédias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
© 2025 Mariana Destro