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ONDE ACABA O STRIPTEASE
Thiago Granai, 2021

It’s the theatrical/ Comeback in broad day/
To the same place, the same face, the same brute/
Amused shout:/ ‘A miracle!’

Sylvia Plath
  
Is that all there is to a fire?
Peggy Lee


A sedução é teatral. Aos poucos, ela se realiza em um ritual encenado com o tempo e a atenção. Cada gesto se pretende como uma revelação cuidadosamente selecionada, instigando a apreensão do todo, mas só as partes podem ser vistas. No striptease, tira-se, lentamente, uma peça de roupa de cada vez, seduzindo pela nudez, que pode ou não se dar por completa. Nunca se dá, no trabalho de Mariana Destro. Ainda que ela assim se exponha, não a vemos inteira — “é mais bonito assim”, ela diz.

Fantasia e identidade se envolvem em erotismo e termos simbólicos consumados em Nonada (2019–2021), trabalho hipermídia que simula o desktop de Mariana. Após meses de experimentação em produção de arquivos digitais, seu desktop é também seu ateliê. Este reúne, além de produções autorais, referências, arquivos pessoais e encontrados, e elementos de trabalho. O que, de certa forma, traduz toda sua produção, sempre composta de referências culturais e apropriações. Nonada pode ser uma apresentação articulada da pesquisa realizada pouco antes e durante os anos de sua produção, mais do que isso, porém, é uma abertura generosa ao espaço íntimo de construção poética da artista.

Fora da razão, sonhos, cartas de tarô e símbolos pessoais assumem formatos digitais e ensejam interpretações para a psiquê da artista. E assim se navega pelo trabalho, entre textos, imagens, vídeos, gifs, áudios e músicas, relacionando arbitrariamente as peças dispostas e estabelecendo, intuitivamente, as próprias conexões. Os sonhos, guardados em uma pasta junto a frases geradas por uma IA (inteligência artificial) oráculo, contam histórias vividas no inconsciente, ao som de “Journey in Satchidananda” (1971), de Alice Coltrane, sobre a imagem da água. Já as cartas de tarô escondem (por senha: travessia) histórias íntimas de encontros casuais aparentemente previstos pelo oráculo, como sugere o fim do conto guardado na carta O Sol. Se os trabalhos anteriores ao Nonada, no mesmo ano, mostram Mariana em frente à câmera, performando como as camgirls enquanto investiga tal prática, aqui ela revela pensamentos e desejos por trás da exposição: “não só quero seduzi-los como quero ser legitimada pelo meu trabalho”, em um dos textos.

Como se contasse as intenções por trás do predecessor Por meio deste trabalho desejo seduzir (2019), Nonada também concentra questões que perpassam outras produções anteriores, como Floating gaze (2018), Rainforest (2019) e I AM THAT (2019). Em Floating gaze, o exercício de camming e de autoexposição é explorado e realizado pela primeira vez, em busca de uma forma coerente de se autorrepresentar enquanto a lógica do olhar pende para a lógica exploratória masculina. Em Rainforest, essa lógica é localizada, pela artista, na epistemologia ocidental e suas interferências no Sul Global, ilustrada em citações de pensadores europeus que definiram a forma como o Brasil é, ainda hoje, entendido. Essas citações invadem as imagens de Mariana como Maria Padilha, com uma peruca longa e morena, em um cenário tropical e artificial montado para a apresentação na webcam; Maria Padilha, como se pudesse desafiar o olhar, ainda que imersa em contradições. Em I AM THAT, a artista questiona o valor da presença em interações de sexo virtual em um vídeo simultaneamente exibicionista e meditativo. O corpo-paisagem com o qual Mariana interage respira em um ritmo profundo, harmonizado com referências a práticas meditativas que integram o trabalho. O título, tradução de So Ham, mantra hindu associado ao som da respiração, poderia reverberar a passagem de The Bell Jar (1963), de Sylvia Plath: “I am, I am, I am”, no momento em que a protagonista, tão próxima da morte, ouve, na respiração, as batidas de seu coração.

A relação desenvolvida entre identidade e representação ao longo de sua produção recente é, então, transparecida no desktop sobre a dinâmica existente entre os profundos e verdadeiros desejos e a imagem que construímos para nós mesmos (ou entre id, ego e superego). A artista mostra que seu desejo de seduzir é o desejo de recriar determinadas narrativas e recontar sua história. Seduzir para enganar o olhar, pelo poder de determinar o que pode ser visto. Para não só afirmar sua subjetividade, constituída sob as tensões políticas do olhar, como dissolvê-la entre pulsões de vida e morte, tão intimamente ativas no erotismo; num breve gosto de liberdade política.

O striptease é a figura central de Nonada, elaborado conceitualmente entre as diversas peças que o mencionam. No texto de Le Striptease (1988), de Sophie Calle; na história contada de Oxum e Iansã; no excerto apropriado do filme Strip-tease (1963), de Jacques Poitrenaud, ao som da música homônima na voz de Nico; em Lady Lazarus (1965), de Sylvia Plath, nos versos citados por Mariana; nas figuras dispostas no desktop, recorrentes no trabalho visual da artista, como a peruca e a costela-de-adão (uma pela fantasia, a outra pela mítica em torno do sexo). Os sonhos e as histórias nas cartas de tarô descrevem experiências eróticas que também podem ser lidas sob a ótica do striptease. Descrito e referenciado de tantas formas, o striptease se torna um meio de gerenciamento de tempo e expectativas pela própria performance, sintonizando passado e futuro, vida e morte. Enquanto no texto de Sophie Calle ele corresponde a uma aventura, no de Sylvia Plath (sendo omitida esta parte no trecho disponível em Nonada), é uma metáfora para a espetacularização da morte em relação ao corpo, podendo ser constantemente reencenado. Trata-se de uma revelação gradual por camadas, incorporada ao próprio acesso de Nonada, que entre um arquivo e outro, conforme se explora o trabalho, revela mais do universo de Mariana, apresentado estrategicamente ao construir-se dentro dessas relações, como em uma curadoria.

Mariana, como também curadora, associa a pesquisa artística e curatorial ao organizar tais referências de maneira direta e intencional na produção. Assim, Nonada parece produzir um tipo de marco em seu trabalho, que concentra, além de questões poéticas, práticas que definem a pesquisa: seleção, apropriação e articulação de elementos já existentes, reinscritos em outras narrativas. Se a natureza da produção de imagens de mulheres no Sul Global se implica nos olhares imbricados em estruturas preexistentes de dominação, a artista se ocupa em determinar outros pontos de vista. Ela formula sua própria imagem pela leitura ativa de elementos de seu universo, entre livros, filmes, álbuns musicais e outros artistas visuais, atravessada por elementos que desafiam a racionalidade (como os sonhos e o oráculo) para uma postura crítica e epistemológica sobre a experiência e o reconhecimento.

Em um único arquivo, Mariana expõe seu corpo e sua imagem em uma troca de nudes registrada por um chat online arquivado. Essa conversa produz alguns comentários sobre o striptease e a articulação de uma experiência através de fragmentos de um todo. O homem reclama que Mariana nunca se deixa ser vista por inteira, ao contrário, instiga, seduz. Ela maneja a interação. Diz, “é só juntar os pedaços. aí cê me vê inteira.” Ao receber o nude, uma foto enquadrada de um pênis, ela se lembra de Império dos Sentidos (1976), de Nagisa Ōshima, filme erótico e brutal baseado na história de Sada Abe, uma mulher japonesa que assassina o amante, decepa seu membro e o guarda em sua bolsa. Essa lembrança faz o nude parecer também decepado, como uma imagem independente de um corpo e transformada em um objeto. Como uma revelação do pensamento poético sobre sua produção, essa imagem indica algo sobre as outras: todas são fragmentos de algo, cortadas, enquadradas e editadas, sem deixar de reconhecer possíveis violências. E, assim, Mariana articula estrategicamente a apresentação dessas imagens e não se deixa ser capturada —

“Aqui acaba o striptease.”
WHERE THE STRIPTEASE ENDS
Thiago Granai, 2021

“It’s the theatrical/ Comeback in broad day/
To the same place, the same face, the same brute/
Amused shout:/ ‘A miracle!’”
Sylvia Plath

“Is that all there is to a fire?”
Peggy Lee


The seduction is theatrical. It slowly takes place in a ritual staged with time and attention. Each gesture is intended as a carefully selected revelation, instigating the apprehension of the whole, but only the parts can be seen. In striptease, one piece of clothing is slowly removed at a time, seducing through nudity, which may or may not be complete. It never does, in Mariana Destro’s work. Even though she exposes herself like that, we don’t see it all—“it is more beautiful this way”, she says.


Fantasy and identity engage in eroticism and symbolic terms consummated in Nonada (2019–2021), a hypermedia work that simulates Mariana’s desktop. After months of experimentation in digital file production, her desktop is also her studio. It brings together, besides authorial productions, references, personal and found files, and work elements. Which, in a certain way, translates her entire work, made of cultural references and appropriations. Nonada may be an artful presentation of the research done just before and during the years of its production, but more than that, it is a generous overture to the artist’s intimate space of poetic construction.

Out of reason, dreams, tarot cards, and personal symbols take on digital formats and give rise to interpretations for the artist’s psyche. And so one navigates through the work, among texts, images, videos, gifs, audios, and music, arbitrarily relating the arranged pieces and intuitively establishing one’s own connections. The dreams, stored in a folder alongside phrases generated by an oracle AI (artificial intelligence), tell stories lived in the unconscious, set to the sound of “Journey in Satchidananda” (1971) by Alice Coltrane, over an image of water. The tarot cards, on the other hand, hide intimate stories of casual encounters apparently predicted by the oracle, as suggested by the end of the story in the card The Sun. If the works previous to Nonada, in the same year, show Mariana in front of the camera, performing like a camgirl while investigating the such practice, here she reveals thoughts and desires behind the exposition: “not only do I want to seduce them, but I want to be legitimized by my work”, in one of her texts.

As if telling the intentions behind the predecessor Through this work, I desire to seduce (2019), Nonada also focuses on themes that run through other past works, such as Floating gaze (2018), Rainforest (2019), and I AM THAT (2019). In Floating gaze, the exercise of camming and self-exposure is explored and performed for the first time, in search of a coherent way of self-representation while the logic of the gaze hangs towards the male exploitative logic. In Rainforest, this logic is located, by the artist, in Western epistemology and its interferences in the Global South, illustrated in quotations from European thinkers who have defined the way Brazil is, even today, understood. These quotes invade Mariana’s images as Maria Padilha, with a long brunette wig, in a tropical and artificial setting set up for the webcam presentation; Maria Padilha, as if she could challenge the gaze, even if immersed in contradictions. In I AM THAT the artist questions the value of presence in virtual sex interactions in a video that is simultaneously exhibitionist and meditative. The body-landscape with which Mariana interacts breathes in a deep rhythm, harmonized with references to meditative practices that integrate the work. The title, a translation of So Ham, a Hindu mantra associated with the sound of breathing, could reverberate the passage from Sylvia Plath’s The Bell Jar (1963): “I am, I am, I am”, at the moment when the protagonist, so close to death, hears, in her breathing, the beats of her heart.

The relationship developed between identity and representation throughout her recent production is, then, made transparent on the desktop about the dynamics existing between the deep and true desires and the image we build for ourselves (or between the id, ego, and superego). The artist shows that her desire to seduce is the desire to recreate certain narratives and retell her story. To seduce to deceive the eye, by the power of determining what can be seen. To not only affirm her subjectivity, constituted under the political tensions of the gaze but dissolve it between life and death drives, so intimately active in eroticism; in a brief taste of political freedom.

Striptease is the central figure of Nonada, elaborated conceptually among the various pieces that mention it. In the text of Le Striptease (1988), by Sophie Calle; in the story told of Oshun and Oya; in the appropriated excerpt from the film Strip-tease (1963), by Jacques Poitrenaud, to the sound of the homonymous song in the voice of Nico; in Lady Lazarus (1965), by Sylvia Plath, in the verses quoted by Mariana; in the figures displayed on the desktop, recurrent in the artist’s visual work, such as the wig and Swiss cheese plant (one for fantasy, the other for the mythical around sex). The dreams and stories in the tarot cards describe erotic experiences that can also be interpreted through the lens of striptease. Described and referenced in so many ways, striptease becomes a means of managing time and expectations through the performance itself, aligning past and future, life and death. While in Sophie Calle’s text it represents an adventure, in Sylvia Plath’s (with this part omitted from the excerpt available in Nonada), it serves as a metaphor for the spectacularization of death in relation to the body, which can be constantly reenacted. It is a gradual revelation in layers, embedded within Nonada itself. As one explores the work, moving from one archive to another, more of Mariana’s universe is revealed, strategically presented as it builds within these relationships, similar to a curated exhibition.

Mariana, as a curator herself, associates artistic and curatorial research by organizing such references directly and intentionally in her production. Thus, Nonada seems to produce a kind of milestone in her work, which concentrates, besides poetic issues, practices that define research: selection, appropriation, and articulation of already existing elements, reinscribed in other narratives. If the nature of the production of images of women in the Global South is implied in the gazes imbricated in pre-existing structures of domination, the artist is concerned with determining other points of view. She formulates her own image by actively reading elements from her universe, among books, films, music albums, and other visual artists, crossed by elements that challenge rationality (such as dreams and the oracle) for a critical and epistemological stance on experience and recognition.

In a single file, Mariana exposes her body and her image in an exchange of nudes logged by an archived online chat. This conversation produces some comments about striptease and the articulation of an experience through fragments of a whole. The man complains that Mariana never lets herself be seen in full, rather she instigates and seduces. She handles the interaction. She says, “you just have to put the pieces together. then you can see me as a whole.” When she receives the nude, a framed photo of a penis, she remembers Nagisa Ōshima’s In the Realm of the Senses (1976), an erotic and brutal film based on the story of Sada Abe, a Japanese woman who murders her lover, cuts off his member and keeps it in her purse. This memory makes the nude seem severed as well, as an independent image of a body transformed into an object. Like a revelation of the poetic thought about her production, this image indicates something about the others: they are all fragments of something, cut, framed, and edited while recognizing possible violence. And so, Mariana strategically articulates the presentation of these images and does not allow herself to be captured—

“Here ends the striptease.”





MARIANA DESTRO
Marília Panitz, 2018

A sala da casa da avó recoberta de tacos de madeira dispostos no desenho geométrico... Memória de outros tempos, na casa modernista... Alguma tradição... Longe.

Os slides desbotados pontuam-despistam a trajetória da família: como olhos transparecendo um passado vivido somente pelos vestígios.

Os livros do avô, ensino da moral, em tempos nada éticos,[1] agora transformados pela mão da artista, contam outras histórias. Essas se misturam a memórias recolhidas dos livros — destinos possíveis como os traçados no labirinto-livro de Ts’ui Pen, seu jardim das veredas que se bifurcam[2] (como o de Borges, que o inscreve na literatura).

A herança recebida é contaminada pelas outras, capturadas na tela de um celular, outra presença que estabelece a união cindida entre Ocidente e Oriente (como nos propõe Borges). A arte do kinbaku[3] ocupa (ilustra) as páginas amareladas, antes percorridas por olhares-aprendizes do status quo, sem liberdade (seria o erotismo uma forma radical da ética, como nos propõe Bataille?[4]). Aqui se apresenta o presente... Tempo.

Do corpo-paisagem, horizonte sobre a estampa de folhagens (a costela de adão), a ficção construída sobre a própria imagem da artista pisca quase imperceptivelmente para nós (como nos pisca a moça em meio a imobilidade construída em filme, por Marker[5]). Da imagem, se extrai a legenda, relato autorreferente da passagem da infância à vida adulta. Pontuada pela fumaça, ela se confunde com as imagens dos corpos-areia de Hiroshima mon amour[6] (aqui, cisão incontornável proposta por Resnais). As janelas que se abrem sobre a imagem (como não lembrar do Livro de Cabeceira[7], versão de Greenaway para o mesmo encontro- desencontro), são uma mistura de belos autorretratos em fragmentos e a (desagradável?) visão dos exercícios[8] de camming — sexo virtual para qualquer um e para ninguém, versão contemporânea dos peep shows (quase insuportáveis)... Solidão extrema. Lugar de reconhecimento roubado aos poucos e insistentemente (como na casa tomada de Cortázar[9], aquela que a artista sutilmente propõe como parábola da casa da avó).

À frente do labirinto de Mariana está o Jardim — como em toda casa — e ao centro dele o grande nó de palha-da- costa[10]: lá, do outro lado do mundo, a mais fina arte do sexo; aqui, ecos do corpo submetido pela escravidão... Eros e Tânatos... Como não podia deixar de ser. E a jiboia, do jardim, vai se imiscuindo na casa-labirinto.




1. A disciplina Educação Moral e Cívica foi estabelecida como obrigatória no Brasil em 1936, durante a ditadura Vargas. A partir do Golpe Militar de 1964, a disciplina é moldada de acordo com as maneiras, estabelecidas pelo Estado, como deveria ser o comportamento do cidadão de bem perante a sociedade. Com a redemocratização do país ela deixou a grade curricular.

2. “Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim das veredas que se bifurcam [Ts’ui Pen] (...) quase de imediato compreendi; o jardim das veredas que se bifurcam era o romance caótico; a frase vários futuros (e não todos) sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, não no espaço (...) o jardim das veredas que se bifurcam é uma enorme charada, ou parábola, cujo tema é o tempo; (...) é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Ts’ui Pen.” Jorge Luis Borges, “O Jardim de Veredas que se Bifurcam”, em FICÇÕES (1944)

3. Sobre kinbaku: “shibari é um verbo japonês que significa amarrar ou ligar. É uma expressão que tomou um sentido diferente no século XX, quando o uso da corda (nawa em japonês) começa a ser utilizada no contexto do uso do shibari para fim erótico, o kinbaku, palavra japonesa para bondage, ou ainda kinbaku-bi, que significa “o bondage bonito”. É um estilo japonês de amarrações sexuais que envolve desde técnicas simples até as mais complicadas de nós, geralmente com várias peças de cordas (em geral de 5mm a 8mm, sendo a mais tradicional a de 6mm) e que podem ser de materiais diferentes, sendo a tradicional corda japonesa utilizada para o shibari, a de juta.” (Wikipédia, consultada em 09/09/2018.)

4. “Não creio que o homem tenha alguma chance de jogar um pouco de luz sobre as coisas que o assustam antes de dominá-las. Não que ele deva ter esperança de um mundo onde não existirá mais razão para ter medo, onde o erotismo e a morte se acharão no plano dos encadeamentos de uma mecânica. Mas o homem pode ultrapassar o que o assusta, pode encará-lo de frente. (...) Creio que o erotismo tem para os homens um sentido que a abordagem científica não pode alcançar. O erotismo só pode ser objeto de estudo se, em sua abordagem, for o homem o abordado. Especialmente, ele não pode ser abordado independentemente da história do trabalho, independentemente da história das religiões. (...) Do erotismo é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte. Para falar a verdade, isto não é uma definição, mas eu penso que esta fórmula dá o sentido do erotismo melhor que uma outra.” Georges Bataille, Prefácio e Introdução de O EROTISMO (1957)

5. Em La Jetée, o cineasta conta a história de uma experiência pós guerra nuclear pelo qual usam um homem para realizar a viagem do tempo usando uma série de fotografias executadas como fotomontagem. Em um único momento, a protagonista, deitada na cama que divide com o homem do futuro, pisca. O curta-metragem, concebido em preto e branco, por montagem de fotos e um momento de filme, em meio a Nouvelle Vague, tornou-se um ícone do cinema de arte. Chris Marker, LA JETÉE (1962)

6. Filme franco-japonês de 1959, dirigido pelo cineasta Alain Resnais, com roteiro de Marguerite Duras. É a história de uma mulher francesa, atriz e casada — vivendo seu último dia em Hiroshima, após filmar um documentário sobre a paz, quinze anos após a bomba nuclear — e seu relacionamento amoroso casual com um japonês, arquiteto e também casado. O filme fez uso inovador de flashbacks — as memórias da mulher de uma outra e trágica história de amor que viveu, no interior da França, ainda na guerra, com um oficial alemão que morre. Ela paga o preço da traição à pátria, sendo exposta à cidade depois de ter seus cabelos raspados (castigo à traição). É um dos grandes ícones do cinema francês da Nouvelle Vague. Alain Resnais, HIROSHIMA MON AMOUR (1959)

7. Baseado no Livro do Travesseiro da escritora japonesa Sei Shōganon. “Greenaway transpôs a ação do filme para a atualidade, utilizando os motivos estéticos e plásticos que sempre caracterizaram o seu trabalho. Tal como em outros dos seus filmes em que as personagens femininas são as mais fortes, também aqui Nagiko é a personagem que começa passivamente por ser o ‘papel’, acaba por se transformar perversamente na ‘pluma’. Um filme que pode ser lido como uma metáfora de como o poder sensual da escrita e da literatura pode levar ao êxtase físico.” (Wikipédia, consultada em 09/09/2018.) No filme, o cineasta usa as “janelas” para, na mesma tela da narrativa, inserir ações paralelas. Peter Greenaway, O LIVRO DE CABECEIRA (1996)

8. Em um site da internet podemos encontrar as diretrizes de como se tornar uma camgirl ou um camboy, através do adult camming. Ou seja, uma espécie de profissionalização da prática de auto-filmagem em atos sensuais para consumo em sites especializados. Parece que vivemos uma espécie de peep show sem que seja necessário o deslocamento, nem a criação de estrutura física. Também há a relação de trabalho comum aos tempos de hoje: sem maiores vínculos.

9. “Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância. (...) Gostávamos de almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e em como conseguíamos mantê-la limpa. Às vezes chegávamos a pensar que fora ela que não nos deixou casar. (...) Andei pelo corredor até ficar de frente à porta de mogno entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. (...) — Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos. (...) Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do quarto. Agora já era tarde. Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene (acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter a ideia de roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada.” Júlio Cortázar, “Casa Tomada”, em BESTIÁRIO (1951)

10. “É a fibra de ráfia conhecida como ìko pelo povo do santo. É extraída de uma palmeira chamada Igí-Ògòrò pelo povo africano e que, no Brasil, recebe o nome de jupati. No candomblé, representa a eternidade e transcendência, como prova da imortalidade e da reencarnação, sendo utilizado na confecção das roupas dos orixás, em especial Obaluayê. Seu uso é indispensável na iniciação (feitura de santo).” (Wikipédia, consultada em 09/09/2018.)
MARIANA DESTRO
Marília Panitz, 2018


The living room of the grandmother’s house, covered with parquet flooring arranged in geometric design... A memory of other times, in the modernist house... Some tradition... Far away.

The faded slides punctuate-distance the family’s trajectory: like eyes shining through a past lived only by traces.

The grandfather’s books, teachings of morality in unethical times,[1] now transformed by the artist’s hand, tell other stories. They mix with the memories collected from the books—possible destinations like the ones traced in Ts’ui Pen’s labyrinth-book, his garden of forking paths[2] (like Borges’, which inscribes him in literature).

The inheritance received is contaminated by the others, captured on the screen of a phone, another presence that establishes the split union between the West and the East (as Borges proposes). The art of kinbaku[3] occupies (illustrates) the yellowish pages, previously covered by gazes-apprentices of the status quo, without freedom (is eroticism a radical form of ethics, as Bataille proposes?[4]). Here is the present... Time.

From the body-landscape, horizon on the print of foliage (the Swiss cheese plant), the fiction built on the artist’s own image blinks almost imperceptibly at us (as the girl blinks at us amid the immobility built on film by Marker[5]). From the image, the caption is extracted, a self-referential account of the passage from childhood to adulthood. Punctuated by smoke, it blends in with the images of the bodies-sand of Hiroshima mon amour[6] (here, an unavoidable schism proposed by Resnais). The windows that open over the image (how not to recall The Pillow Book[7], Greenaway’s version of the same meeting-missing), are a mixture of beautiful self-portraits in fragments and the (unpleasant?) vision of the exercises[8] of camming—virtual sex for anyone and no one, a contemporary version of the (almost unbearable) peep shows... Extreme loneliness. Place of recognition that is eagerly stolen little by little (as in Cortázar’s house taken over[9], the one that the artist subtly proposes as a parable of her grandmother’s house).

In front of Mariana’s labyrinth is the Garden—as in every house—and at the center of it the great palm straw braid[10]: there, on the other side of the world, the finest art of sex; here, echoes of the body subjected by slavery... Eros and Thanatos... As it could not be otherwise. And the devil's vine, from the garden, intrudes into the house-labyrinth.




1. The discipline of Moral and Civic Education was established as mandatory in Brazil in 1936, during the Vargas dictatorship. After the military coup of 1964, the subject was molded according to the manners established by the State as to how should be the behavior of a good citizen before society. With the re-democratization of the country, it left the curriculum.

2. “I leave to several futures (not to all) my garden of forking paths. [Ts’ui Pen] (...) almost instantly, I saw it—the garden of forking paths was the chaotic novel; the phrase ‘several futures (not all)’ suggested to me the image of a forking in time, rather than in space (...) the garden of forking paths is a huge riddle, or parable, whose subject is time; (...) is an incomplete, but not false, image of the universe as conceived by Ts'ui Pen.” Jorge Luis Borges, “The Garden of Forking Paths”, in FICTIONS (1944)

3. About kinbaku: “shibari is a Japanese verb that means to tie or bind. It’s an expression that took on a different meaning in the 20th century when the use of rope (nawa in Japanese) began to be used in the context of erotic shibari, known as kinbaku, a Japanese word for bondage, or kinbaku-bi, which means ‘beautiful bondage’. It’s a Japanese style of sexual bondage that involves techniques ranging from simple to complex knots, usually with multiple pieces of rope (generally 5mm to 8mm, with the most traditional being 6mm) made from different materials, with the traditional Japanese rope used for shibari being made of jute.” (Wikipedia, accessed on 09/09/2018.)

4. “I do not think that man has much chance of throwing light on the things that terrify him before he has dominated them. Not that he should hope for a world in which there would be no cause for fear, where eroticism and death would be on the level of a mechanical process. But man can surmount the things that frighten him and face them squarely. (...) I believe that eroticism has a significance for mankind that the scientific attitude cannot reach. Eroticism cannot be discussed unless man too is discussed in the process. In particular, it cannot be discussed independently of the history of religions. (...) Eroticism, it may be said, is assenting to life up to the point of death. Strictly speaking, this is not a definition, but I think the formula gives the meaning of eroticism better than any other.” Georges Bataille, Preface and Introduction to EROTISM (1957)

5. In La Jetée, the filmmaker tells the story of a post-nuclear war experiment in which they use a man to achieve time travel using a series of photographs executed as a photomontage. In a single moment, the protagonist, lying in the bed she shares with the man from the future, blinks. The short film, conceived in black and white, with a montage of photos at a moment of the film, amid the French Nouvelle Vague, became an icon of art cinema. Chris Marker, LA JETÉE (1962)

6. A 1959 French-Japanese film directed by filmmaker Alain Resnais, screenplay by Marguerite Duras. It is the story of a French woman, a married actress—living her last day in Hiroshima, after filming a documentary about peace, fifteen years after the nuclear bomb—and her casual love affair with a Japanese architect, also married. The film made innovative use of flashbacks— the woman’s memories of another tragic love story she lived, in the French countryside, still in the war, with a German officer who dies. She pays the price of betrayal to the fatherland, being exposed to the city after having her hair shaved off (punishment for betrayal). It is one of the great icons of French Nouvelle Vague cinema. Alain Resnais, HIROSHIMA MON AMOUR (1959)

7. Based on The Pillow Book by Japanese writer Sei Shōganon. “Greenaway has transposed the action of the film to the present day, using the aesthetic and plastic motifs that have always characterized his work. As in other of his films in which the female characters are the strongest, so here Nagiko is the character who starts passively as the ‘paper’, and ends up perversely becoming the ‘feather’. A film that can be read as a metaphor for how the sensual power of writing and literature can lead to physical ecstasy.” (Wikipedia) In the film, the filmmaker uses “windows” to, on the same screen as the narrative, insert parallel actions. Peter Greenaway, THE PILLOW BOOK (1996)

8. On the Internet, we can find guidelines on how to become a camgirl or a camboy, through adult camming. In other words, a kind of professionalization of the practice of self-filming in sensual acts for consumption in specialized sites. It seems that we live in a kind of peep show without the need for displacement or the creation of a physical structure. There is also the working relationship common to today’s times: no strong ties.

9. “We liked the house because, apart from its being old and spacious (in a day when old houses go down for a profitable auction of their construction materials), it kept the memories of greatgrandparents, our paternal grandfather, our parents and the whole of childhood. (...) It was pleasant to take lunch and commune with the great hollow, silent house, and it was enough for us just to keep it clean. We ended up thinking, at times, that that was what had kept us from marrying. (...) I went down the corridor as far as the oak door, which was ajar, then turned into the hall toward the kitchen, when I heard something in the library or the dining room. (...)—I had to shut the door to the passage. They’ve taken over the back part. (...) We had what we had on. I remembered fifteen thousand pesos in the wardrobe in my bedroom. Too late now. I still had my wrist watch on and saw that it was 11 p.m. I took Irene around the waist (I think she was crying) and that was how we went into the street. Before we left, I felt terrible; I locked the front door up tight and tossed the key down the sewer. It wouldn’t do to have some poor devil decide to go in and rob the house, at that hour and with the house taken over.” Júlio Cortázar, “House Taken Over”, in BESTIARIO (1951)

10. It is the raffia fiber known as ìko by practitioners of African diasporic religions. It is extracted from a palm tree called Igí- Ògòrò by the African people, and in Brazil is called jupati. In candomblé, it represents eternity and transcendence, as proof of immortality and reincarnation, and is used in the making of the clothes of the orishas, especially Obalúwayé. Its use is indispensable during initiation. (Wikipedia, accessed on 09/09/2018.)
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